A melhor amiga da comédia

Há uns dias atrás estava à janela a ver o pôr-do-sol e a beleza do fenómeno natural a que assistia inspirou-me. Peguei na guitarra e comecei a tocar. Os raios do sol letárgico aqueciam-me a face e os suaves acordes sussurravam-me aos ouvidos. Construí, assim, um momento de rara perfeição, até que uma corda rebentou e me vazou um dedo.
Entre gritos, apitos e impropérios irrepetíveis percebi duas coisas: a primeira é que tinha um vergão no dedo; a segunda é que na vida sobrevalorizamos sempre as coisas más.

“Fez um dói-dói no dedinho, foi?”. Sinceramente, caro leitor, começo a ficar farto desses seus comentários jocosos. O leitor deve julgar que este blogue é uma infantilidade ou uma patetice! Engana-se redondamente! Na verdade, é uma mistura dos dois: é uma patetice infantil. O comentário proferido, ainda assim, só reforça a ideia introduzida no post de hoje: o leitor podia ter-se centrado no que de bom foi descrito até aqui; contudo, prevaleceu o instinto de gozar com o meu dói-dói.
“E porque será que sobrevalorizamos sempre as coisas más?”, perguntará o leitor, fingindo-se de interessado. Há quem diga que se deve à criatura humana ser inatamente pessimista. Eu digo que se deve à criatura humana ser inatamente trocista. História nenhuma vale a pena ser contada aos amigos se não envolver pormenores rocambolescos revestidos de desgraça, porque é com a nossa miséria que eles vão rebolar a rir. Não é por acaso que ao lado da máscara da tragédia está sempre a da comédia…
Aqueles breves minutos à janela, por exemplo, tinham tudo para ser uma pequena mas agradável recordação. No entanto, se o caro leitor me perguntar que música eu estava a tocar na guitarra, não lhe sei responder, por muito que puxe pela memória. A única coisa de que me recordo vividamente é de ter levado uma fisgada no dedo. A única coisa que conservo daquele bonito momento é um valente vergão no dedo. É mesmo assim, o nosso cérebro, selectivo e sedento de comiseração e protagonismo, atribui aos pequenos infortúnios o papel principal.
Em última análise, nunca nos podemos esquecer de que quando uma corda se parte basta substituí-la para continuar a tocar. Nunca nos podemos esquecer de que não interessa que música tocamos, mas simplesmente tocar. Também nunca nos podemos esquecer de que há um momento a partir do qual as metáforas se tornam ridículas. Tendo isso em conta, fico por aqui caro leitor.


4 reacções a A melhor amiga da comédia

  1. Inês G says:

    desculpe desiludi-lo mas fiquei-me mm pelo facto de ter estado à janela, a tocar guitarra...mas pergunto-me, por do sol?! nao seria mais o estádio da luz? lol =P

    Mais um post notável e admirável em toda a sua essencia e sabedoria lol
    aguarda-se com ansiedade aquele q nos desiluda para conseguir vir colocar em prática a minha mà lingua =P

    *

  2. Anónimo says:

    Como este mundo anda...ainda bem que a a desgraça anda aliada, e bem aliada, à comédia porque de facto, nestes momentos desesperantes que o país e o mundo atravessam...nada melhor do que uma boa gargalhada para tornar tudo mais leve e menos caoticos.
    E meu caro amigo, a minha ausência de comentários não se traduz numa ausência de visitas ao seu grande blog, porque a ele faço publicidade pois é um bom meio, barato e com classe de dar-mos uma boa gargalha!
    a aguardar o próximo artigo
    Ana S

  3. Anónimo says:

    Caro Escritor,

    deixe-me questioná-lo acerca da validade semântica da expressão "vazar um dedo", que confesso, me é completamente nova, ao contrário da versão corrente "vazar um olho" da qual se depreende o significado lógico de "vazamento" da cavidade orbital.

    Deixo-lhe também como sugestão esta interessante leitura:

    http://aventar.eu/2011/07/22/o-celibato-como-sistema-reprodutivo-de-pessoas-bens-e-saberes-em-aldeias-camponesas/

    Os Melhores Cumprimentos

  4. Boa noite caros leitores,

    Mais uma vez dou um saltinho a esta secção do site para agradecer todos os comentários que por aqui vão surgindo. Aos leitores emocionalmente mais sensíveis esclareço que estou de igual forma grato pelas simples e bondosas visitas. Fique descansado caro leitor: o comentário não é, de forma nenhuma, um preceito obrigatório e eu gosto de encarar o seu silêncio como um sinal de aprovação… Sinta-se à vontade, ainda assim, para criticar quando achar que o deve fazer. Julgo ter sido o dramaturgo Friedrich Durrenmatt a dizer que “as pessoas estão tão expostas à crítica como à gripe” e, tendo eu um sistema imunitário muito fraquinho, só me estou a pôr a jeitos.
    Curiosamente, estamos na época das ditas gripes e, por isso mesmo, estamos todos sujeitos a elas. Por isso, aproveito para esclarecer que este blogue se pauta sobretudo pela ironia e por um leve toque nonsense, umas vezes voluntário, outras vezes nem por isso… Nem tudo pode ser – nem é desejável que seja – levado à letra, sob o risco de todas as extrapolações e liberdades expressivas se tornarem insípidas. Ainda assim, agradeço a chamada de atenção acerca do verbo “vazar”, mas não posso deixar de acrescentar que, entre outros, o verbo pode tomar o significado de “furar” ou “arrancar”- ver http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/vazar.

    Muito obrigado pela dedicação, caros leitores! Vou vazar – no sentido de que me vou embora, claro está…

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