Feliz Inconsciência

Em 1984, a banda anglo-americana Foreigner editou o seu maior sucesso: “I Want to Know What Love Is”. O leitor não se deixe enganar pelo título lamechas da canção. Trata-se de um tema cruel e que viajou no tempo para maltratar uma pobre alminha…

Saltemos agora 25 anos no tempo. O calendário marcava o ano de 2009. O lugar era obscuro e eu sentia-me como que em movimento: estava no 16 da Carris. Sentado ao meu lado estava um jovem que, de phones nos ouvidos, se isolava do mundo ao seu redor. Infelizmente para o dito, o mundo ao seu redor não se isolou dele, e não pôde deixar de ouvi-lo cantar: “I want to know what love is…I want you to show me!”.
  Para além de saber a letra de fio a pavio – que deve ter decorado quando ainda era uma menina –, este homem de barba feita cantava com entusiasmo e afinação descontrolados! Nem o uníssono das gargalhadas o fez aperceber-se de que, afinal, não estava apenas a sussurrar a canção, mas a vocalizá-la a plenos pulmões. A escassos dois palmos de distância estava eu, a lutar contra o que parecia uma inevitável perfuração do tímpano esquerdo e a perguntar-me o porquê dos Foreigner terem lançado tal maldição sobre aquele pobre sujeito.
Decidi naquele momento que alguém tinha que fazer frente àquela canção dos demónios e salvar aquele rouxinol engasgado de um embaraço ainda maior. Deparei-me, porém, caro leitor, com um dilema moral: alertar o desgraçado para a triste figura que estava a fazer, ou deixá-lo cantar, chegar ao seu destino de paragem e ir para casa feliz e inconsciente de que acabara de fazer a viagem de autocarro mais ridícula da sua vida.   
Já a prever que um dia eu me veria em tal situação, Nietzsche perguntou e respondeu: "Que encontras de mais humano? Poupar a vergonha a alguém". Lamentavelmente, eu não penso nestas coisas. Aliás, gosto de pensar que o meu cérebro é o sítio para onde o silêncio vai descansar… Por isso, apesar de ter poupado a vergonha ao rapaz em 2009, decidi agora, do alto da minha humanidade, publicá-la neste lugar privado a que chamamos “internet”. Afinal de contas, caro leitor, errar é ainda mais humano.

2 reacções a Feliz Inconsciência

  1. D says:

    Meu caro, esse 'rouxinol engasgado' não precisava que o livrasses 'de um embaraço ainda maior'... ele apenas queria saber 'what love is' e aparentemente nenhuma alminha presente no 16 da Carris o quis elucidar... Eu nem sou de provocar, mas quem estava mesmo ao lado eras tu...!!

    Mais um belíssimo texto, desta vez provocador de umas boas gargalhadas! Adoro esse teu registo cómico requintado =)

  2. M.Dionisio says:

    Já dizia John Lennon "A ignorância é uma espécie de benção"

    M.Dionisio

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